
Ivan Jubert Guimarães
03/12/2014.
O ar estava
seco naquela manhã em Genebra e o sol parecia não ter força
suficiente para furar aquela cortina de poluição, outrora tão
incomum naquela linda cidade suíça.
Uma importante reunião secreta acontecia nos arredores da cidade,
bem longe do burburinho que havia tomado conta de toda a população,
já havia alguns anos. A Suíça passava fome e principalmente sede. Os
rios estavam quase secos e a água outrora cristalina que descia dos
Alpes, já não existia.
Na verdade, isto não era um privilégio suíço, mas de quase todo o
mundo. Aliás, a situação estava muito pior fora dos países nórdicos.
Quase não chovia mais em nenhum lugar do mundo, embora raios e
trovões acontecessem com frequência.
O céu avermelhava ao cair da tarde e em alguns lugares do planeta o
solo tinha se tornado árido o que provocava a fome de seres humanos
e de animais. Na África, os animais selvagens deram lugar a um
exército de insetos de toda espécie que faziam dos cadáveres
ressequidos suas moradas.
Em Veneza, na Itália, as gôndolas jaziam nos leitos dos antigos
canais e a cidade estava deserta, não fosse a grande população de
ratos.
As grandes capitais europeias fediam que era quase impossível andar
nas proximidades dos antigos belos rios que cortavam as cidades.
Londres e Paris já não recebiam turistas.
No Ocidente, as Américas pareciam formigueiros, uma vez que seus
habitantes corriam de um lado para outro à procura de alimentos e de
água.
A floresta amazônica estava quase extinta e seus rios estavam cada
vez mais baixos. Em alguns lugares, o mar invadia os rios e tornava
suas águas salgadas o que vinha provocando a morte dos peixes.
O mundo que até então abusava do desperdício, começava a viver um
período de muita escassez. As indústrias pararam em quase todo o
mundo já que a falta de água usada para refrigeração de máquinas,
lavagem de equipamentos e de produtos alimentícios in natura quase
não existia mais.
Os fabricantes de bebidas de todos os tipos fecharam suas portas.
Não havia água suficiente para a fabricação de cervejas e
refrigerantes, vinhos ou mesmo de bebidas destiladas. Com pastos
secos, o gado não comia e as vacas não davam mais leite.
Os engarrafadores de água mineral eram poucos em todos os países do
mundo e uma garrafa de água passou a custar uma verdadeira fortuna.
Os governos haviam tomado decisões terríveis para, pelo menos,
salvar uma parte da humanidade. Foram medidas assassinas, no
entanto.
Ficou proibido nascer. Em quase todos os países do planeta as
mulheres não podiam mais engravidar e, se assim acontecesse, teriam
que abortar, já que o mundo não podia mais abrigar novos seres
vivos. Os velhos não conseguiam mais remédios e nem internações em
hospitais para qualquer tipo de tratamento. Estavam condenados à
morte!
Alguns agricultores e fazendeiros se isolaram do resto da sociedade.
Passaram a produzir apenas para o consumo de seus familiares. O
dinheiro já não tinha tanta importância, o essencial era viver. O
pensamento era: por que vender algo que pode me fazer falta amanhã?
Mesmo com tudo isso acontecendo, muitos ainda pensavam em ganhar com
esta situação. Entretanto, o desemprego era geral, maior do que
nunca.
O planeta tão maltratado nos últimos anos, pela ganância da maior
parte da humanidade sentia agora a reação do Universo e da Mãe
Natureza. O clima mudara vertiginosamente afetando a produção
agrícola e pecuária. Nos rios não havia mais peixes, uma vez que
muitos rios haviam secado e outros haviam sido invadidos pelas águas
dos mares.
A fome que um dia Malthus profetizou finalmente havia chegado ao
mundo. O calor era insuportável e, em alguns países, a temperatura
era igual a dos desertos, com uma diferença: fazia calor também à
noite!
Governantes das principais nações estavam nervosos e a proximidade
de uma terceira guerra, poderia ser a possibilidade de ganhar alguma
coisa.
Jovens de diversas partes do mundo alistavam-se nas Forças Armadas,
pois os soldados recebiam rações diárias e água.
E lá em Genebra os principais líderes religiosos do mundo estavam
tensos com o que estavam prestes a decidir.
A tensão era justificada porque pouco tempo antes todos estiveram
reunidos no Vaticano discutindo medidas que deveriam ser tomadas
para combater a escravidão, ainda quando a seca não passava de uma
séria ameaça, que talvez nem acontecesse.
Ao contrário do que acontecera no Vaticano, desta vez não seria o Papa
quem comandaria a reunião. Por um acordo pré-estabelecido, o líder
religioso do povo mais antigo deveria conduzi-la.. Mas
surgiram muitas divergências entre os participantes, uma vez que
judeus, muçulmanos, budistas e hindus reivindicavam este privilégio.
Foi então que o Papa falou:
-" Senhores líderes religiosos, peço a palavra para saudá-los e
propor-lhes uma idéia para que não haja mais discordâncias sobre que
povo chegou primeiro ao planeta".
-" Representantes da religião judaica, representante da religião
muçulmana, arcebispo representante da religião anglicana,
representante da religião ortodoxa, venerável representante do
budismo e venerável representante do hinduísmo: reconheço que a
religião mais antiga do planeta é o hinduísmo e que também é uma das
maiores religiões do mundo. Mas considerando que durante séculos o
hinduísmo adorou mais de um Deus, peço a compreensão de todos para
que esqueçamos os fatores religiosos de nossas doutrinas."
-" Lembro a todos que o próprio Deus em diferentes fases do mundo,
teve que exterminar a humanidade, ou parte dela, para dar início a
uma nova civilização que desse continuidade à Sua criação. Nossos
povos, de todas as religiões tornaram-se fanáticos por seguirem
cegamente os dogmas que nós mesmos lhes impusemos. A fé em Deus
quase não existe mais no planeta e tampouco homens de boa vontade.
Hoje, apesar das diferenças dogmáticas, nossas religiões conduzem a
único Deus e o nome do Criador sofre modificações de religião para
religião, em princípio pela diferença de idiomas.".
"- Tempo mais tarde destruiu a torre de Babel e também as cidades de
Sodoma e Gomorra, símbolos de vaidade e de luxúria."
"- E é isso o que devemos fazer a partir de agora, sem guerras, como
os governantes dos países desenvolvidos estão prestes a fazer."
Houve um burburinho na sala e o líder muçulmano gritou:
,
"- Vossa santidade está louco? Falar em exterminar a humanidade? Nós
não somos assassinos!"
"- Será mesmo que não? - perguntou o Papa - E Deus, quando destruiu
a humanidade pode ser chamado de assassino? Ele, por acaso, não fez
o que deveria fazer? E eu não estou falando em exterminar a
humanidade, quero salvá-la, pelo menos salvar o maior número de
pessoas."
"-Os homens do governo não dão mais assistência médica e nem
remédios para os idosos. Mulheres estão proibidas de engravidar e
caso isso aconteça terão que abortar. Isso é crime senhores!"
"- Desde os primórdios da civilização sempre prevaleceu a lei do
mais forte e esta lei funcionou para os homens e para os animais. E
isso vigora até os dias atuais, inclusive em seus países. Ou não?"
"- Mas aonde Vossa Santidade quer chegar?" - perguntou o líder
indiano.
"- O que mais faz falta hoje no planeta? Comida e água, não é
verdade? É isso que estou propondo fazer."
"- Mas são coisas escassas que quase não existem mais na terra!" -
disse o líder dos judeus.
"- De fato, mas vamos pensar na cadeia alimentar de alguns animais.
Muitos insetos se alimentam de sangue humano e do sangue dos
animais. Alguns mamíferos também o fazem. E mesmo humanos bebem
sangue quando preparam algumas iguarias culinárias, como carnes mal
passadas, carnes ao molho pardo e etc."
"-70% de nosso corpo é constituído por água, que inclui o sangue. O
sangue tem gorduras e proteínas. Minha proposta é fazer com que os
cidadãos do mundo passem a doar sangue uma vez por semana e é com
esse sangue que iremos matar a fome e a sede do mundo, sem falar do
sangue e da carne dos animais que ainda restam."
"-Sabemos que muita gente ainda irá morrer e minha estimativa é que
mais da metade da humanidade será extinta, talvez mais. Vocês têm
alguma outra ideia? Ou será que o melhor é a matança?"
"- Vampiros! É nisso que vamos nos transformar? Em vampiros? Disse
um dos líderes.
"- Não Arcebispo, os vampiros sugam o sangue de suas vítimas. Nós
não faremos isso. Beberemos sangue doado e que será tratado para
adequá-lo para nossa nutrição".
"-Mas por que
cabe a nós fazer isso e não aos governos?
“- Porque a
população iria achar que é pecado fazer tal coisa sem aprovação dos
líderes religiosos do mundo”.
Depois de muita discussão, os líderes religiosos do mundo a de
nações acabaram por concordar com a proposta papal. Elaboraram um
documento que seria entregue em mãos dos presidentes das grandes
nações que divulgariam isso aos outros países através da mídia como
uma ordem a ser cumprida para salvar o mundo da destruição total. O
não cumprimento acarretaria uma invasão bélica total.
E assim foi feito!
No princípio houve certa dificuldade em aceitar a nova ordem, mas a
sede e a fome falaram mais alto e logo as coisas pareceram ter
normalidade.
Os líderes se esqueceram apenas de uma coisa muito importante, coisa
de que o Papa deveria saber mais do que os outros, já que se referia
a dois pecados capitais: a gula e a soberba.
Insatisfeitos com suas quotas diárias os homens que tinham poder e
também os políticos de várias nações começaram a atacar as pessoas
em plena rua, ou invadindo suas casas para beber sangue direto da
fonte. Com essa atitude o mundo foi-se transformando em um lugar
horrível para se viver.
A Terra estava prestes a perder seus últimos habitantes, pois
aqueles que tinham seu sangue sugado, não conseguiam sobreviver. E
tudo isso porque o homem passou mais de um século destruindo o
planeta, não preservando os recursos naturais, como florestas, rios
e lagos e até mesmo os oceanos, tudo por causa do poder, do egoísmo
e da vaidade.
Ivan Jubert Guimarães
Direitos reservados ao autor
Midi: Assim Falou Zarathustra 2001


|