Ivan Jubert Guimarães
Outubro de 2006
Em 1942 a Segunda Guerra Mundial já estava em seu terceiro ano. O
mundo vivia um período de grave crise. Hitler já havia invadido
quase toda a Europa. De um lado as forças do eixo, formadas pela
Alemanha, Japão e Itália. De outro, os ingleses e o que restava dos
exércitos da França e de outros países ocupados pelos alemães. A
França nem tinha mais exército, mas possuía uma forte resistência,
formada por seus cidadãos que não se conformavam em ver seu país
ocupado. Também na Iugoslávia, havia um forte movimento de
resistência aos alemães. Entretanto, isso não era suficiente para
expulsar as forças germânicas de seus países. Faltavam armas
suficientes para isso, e homens também.
Após o ataque a Pearl Harbor feito pelos japoneses em dezembro de
1941, destruindo a armada norte-americana ancorada naquela base
militar, os Estados Unidos entraram no conflito com a declaração de
guerra feita ao Japão.
O Brasil apenas declara solidariedade ao país vizinho. Nesta época,
o país vivia sob o regime do Estado Novo de Getúlio Vargas, uma
ditadura, portanto.
Era neste panorama em que Elisabete e o Tenente do Exército Luís
Carlos viviam.
Elisabete era radiotelegrafista, profissão que aprendera de seu pai
e, naquela época, quase não havia mulheres que sabiam essa profissão
e, com o país vivendo conflitos internos e ainda com o mundo em
guerra, seus trabalhos passaram a ser bastante solicitados. Ela
gostava do que fazia e como era uma mulher muito atraente, costumava
distrair a atenção dos outros telegrafistas, o que sempre era motivo
de broncas dos supervisores, não a ela evidentemente, que era a mais
eficiente do quadro.
Luís Carlos havia terminado a academia de Agulhas Negras há pouco
mais de um ano, saindo de lá como Segundo Tenente, posto que ainda
ocupava. Ele era originariamente de São Paulo, mas estava servindo
no Rio de Janeiro. Luís Carlos descendia de uma família de
militares, seu avô tinha sido General de Exército e seu pai era
Coronel e ainda estava na ativa.
O pai de Elisabete havia sido sargento do exército e havia sido lá
que aprendera o ofício de radiotelegrafista. Quando se aposentara
prematuramente, devido a um acidente que fez com que passasse a
andar mancando, sua vida meio que desmoronou. A insatisfação de
sentir-se inválido provocou nele algumas mudanças, entre as quais, o
consumo de bebidas. Sua mãe não suportando mais ver o marido daquele
jeito abandonou-o e também a Elisabete, que na verdade preferia
ficar com o pai e tentar curá-lo do vício dando-lhe um novo alento
na vida.
Elisabete começou a trabalhar em uma tecelagem, mas como o salário
era muito pequeno, e ela era uma garota estudada, logo mudou de
emprego indo trabalhar numa fábrica de gorduras vegetais, na área
comercial. Era uma exímia datilógrafa e seu serviço era muito
requisitado. À noite, quando chegava em casa, Elisabete preparava o
jantar para ela e o pai e procurava conversar bastante com ele. Aos
poucos, o velho sargento ia diminuindo o consumo da bebida para
poder estar sóbrio quando a filha chegasse, pois ela era a única
pessoa que ele tinha para conversar.
Nessas conversas, o velho sargento contava coisas do passado para
Elisabete e sobre o trabalho que fazia como radiotelegrafista e as
vantagens que tinha em ser sempre o primeiro a saber das notícias.
Elisabete foi se interessando em aprender o código Morse e, em pouco
tempo, ela já sabia operar o código como um profissional. Ás vezes
ela e o pai se comunicavam em código Morse dentro de casa. Ele
usando um lápis que batia na mesa e ela alguma coisa qualquer, às
vezes, até uma velha máquina de escrever. A rapidez dela era tanta
que seu pai começou a sugerir que ela deveria procurar um trabalho
nessa área
Um dia, ela criou coragem e dirigiu-se a um grande jornal.
Fizeram-lhe um teste de datilografia e iam admiti-la como
datilógrafa, cargo que ela não aceitou, queria ser
radiotelegrafista. Não foi aceita e, sem desanimar, procurou
trabalho em agências de notícias onde conseguiu o cargo que queria,
embora o horário de trabalho não fosse fixo, havendo escalas de
serviço, fato que nem de longe a preocupou. Seu talento e precisão
logo fizeram dela a principal radiotelegrafista da agência.
Numa determinada tarde de novembro de 1941, ela conheceu o tenente
Luís Carlos. Este havia acompanhando um major do exército até a
agência onde ela trabalhava, pois o major levava um “pedido
especial” do presidente Vargas, para que todas as notícias falando
da guerra, fossem enviadas imediatamente ao palácio do Catete, sede
do governo na época. Após a curta reunião, o major pediu que o
tenente ficasse no local e participasse da reunião que o pessoal da
agência teria dali a minutos. Meio contrariado Luís Carlos cumpriu a
ordem. Durante a reunião, o supervisor do setor explicou a todos os
radiotelegrafistas as novas instruções e que o presidente da
República exigia que todas as notícias falando da guerra na Europa
fossem enviadas imediatamente a ele. Elisabete fora encarregada de
compilar as notícias e contatar o tenente Luis Carlos. Eles dois
seriam o elo entre a agência e o palácio do governo.
Luís Carlos ficou satisfeito com esta decisão, pois ficara encantado
com a beleza de Elisabete e com sua simplicidade e inteligência.
Naquela mesma noite, quando ela deixou o emprego chovia forte no Rio
de Janeiro e Elisabete, sem guarda-chuvas, esperava sob a marquise
do prédio que aquele aguaceiro diminuísse para que ela pudesse ir
para casa. Estava absorta em seus pensamentos quando uma voz atrás
dela murmurou:
- Quando eu desci já estava chovendo e então resolvi esperá-la para,
quem sabe, nos conhecermos um pouco melhor já que iremos trabalhar
juntos a partir de agora.
Ela virou-se, quase que não entendendo direito o que aquela voz lhe
dizia e deu de cara com o tenente que sorria para ela. Aquele
sorriso pegou-a desprevenida obrigando-a sorrir também.
- Você mora longe daqui? – perguntou ele.
- Não muito, costumo vir e voltar a pé para casa. É aqui mesmo no
Centro.
- Mas acho que hoje talvez seja melhor você pegar uma condução. Esta
chuva não parece que vai parar tão cedo.
- Parece que é verdade, mas terei que ir assim mesmo para preparar o
jantar de meu pai. Ele não anda muito bem de saúde.
- O que ele tem?
- Não é um problema clínico na verdade. Ele era sargento do exército
e sofreu um acidente e foi aposentado. Isso o abalou bastante, minha
mãe nos deixou há alguns anos e ele viveu momentos de depressão
devido à bebida. Tem-se esforçado muito nos últimos tempos e quase
não bebe mais, apenas para conversar comigo.
- Quer dizer então que temos algo em comum, familiares do exército.
Acho que vamos nos dar muito bem. Me diz uma coisa, para que lado é
sua casa? Direita ou Esquerda?
- Direita, por quê?
- Porque a Confeitaria Colombo fica aqui perto na Rua Gonçalves Dias
e eu pensei darmos uma corrida até lá, tomarmos um chocolate e se a
chuva não passar, você estará mais aquecida e mais perto de casa, o
que acha?
- A idéia não parece má, mas a gente mal se conhece, não sei de
devemos e depois chegaremos lá ensopados.
Luís Carlos não esperou ela terminar de falar, pegou-a pela mão e
atravessaram correndo para o outro lado da avenida e foram
caminhando a passos rápidos por sob as marquises dos edifícios. A
confeitaria ficava a mais duas quadras de onde estavam quando ele
perguntou:
- Cansada?
- E molhada – respondeu rindo.
- Logo estaremos lá.
Não foi difícil arranjarem uma mesa, pois com aquele tempo poucos se
arriscavam a sair de casa, mas a Colombo nunca ficava fazia.
- Diga-me uma coisa Elisabete, em qual unidade seu pai servia?
- Ele servia no Quartel-General onde era radiotelegrafista.
- E como ele se feriu?
- Foi num exercício de manobra. Ele carregava o equipamento às
costas e um jipe passou perto demais e ele caiu num barranco e
quebrou a perna em dois lugares. Nunca voltou a andar normalmente e
por isso foi aposentado.
- Qual o nome dele?
- Afonso de Freitas Lima.
- Sargento Liminha.
- Você conhece meu pai?
- Todo mundo conhece seu pai e suas histórias, um grande homem. Se
você me permitir, gostaria de acompanhá-la até sua casa e revê-lo.
- Desculpe Luis Carlos, mas não sei se ele gostaria que você o visse
do jeito que ele está agora e depois não sei dizer se ele está
sóbrio, pois já passou do horário de eu chegar em casa.
- Eu entendo, mas eu ficaria muito feliz se pudesse revê-lo e tenho
certeza de que ele ficará muito feliz em me ver também.
- Vocês eram íntimos assim?
- Não, na verdade quase nunca nos falamos, mas o pouco que ele me
disse mudou minha vida. Por favor, se não for hoje que seja outro
dia, mas gostaria muito de vê-lo outra vez.
- Tudo bem, verei o que posso fazer. – E olhando para fora: - a
chuva ainda não parou. Eu preciso mesmo ir.
- Está bem, vou pagar a conta e iremos.
Saíram da confeitaria e a chuva ainda caía. Iam se despedir quando o
tenente percebeu a aproximação de um táxi e fez sinal para que ele
parasse.
- Vem, entra comigo e eu deixo você em casa e prometo que vou
embora.
- Para onde vamos senhor? – perguntou o motorista.
- Eu vou para o Flamengo, mas a moça vai ficar aqui mesmo no Centro,
me parece que indo em frente e no final à esquerda, é isso
Elisabete?
- Isso mesmo, o senhor pode ir em frente até uma quadra antes do
final da avenida e lá o senhor pega à esquerda.
Em menos de cinco minutos o táxi parava em frente do prédio onde
Elisabete morava. Era um prédio pequeno de 3 andares e sem elevador.
Ela morava no segundo andar. Luís também desceu para se despedir
dela no mesmo instante em que a chuva diminuía de intensidade
tornando-se apenas uma garoa.
- Bem, promessa é promessa, mas eu gostaria muito de tornar a vê-la.
Acho que temos coisas em comum e gostaria de conhecê-la melhor, isso
se não houver nenhum motivo que torne minha atitude inconveniente.
- Claro que não, pague o táxi.
- Como?
- Pague o táxi e suba comigo.
Luís pagou ao motorista e deu-lhe uma boa gorjeta e, em seguida
subiu o lance de escadas atrás de Elisabete.
Quando Elisabete abriu a porta do apartamento teve uma surpresa. A
mesa estava posta e seu pai estava acabando de preparar o jantar,
coisa que ele nunca fizera antes. Ela ficou boquiaberta e seus olhos
irradiavam felicidade quando beijou o pai.
- Temos visita papai! Está esperando lá na sala. Eu o conheci hoje e
ele insistiu em me acompanhar até em casa
Quando Elisabete e o velho sargento entraram na sala, o tenente
ficou em posição de sentido e apresentou-se: “tenente Luis Carlos,
senhor”
A primeira impressão é que o velho sargento não sabia de quem se
tratava e que estava confuso pelo fato de um oficial se perfilar
para se apresentar a um velho sargento aposentado.
- Tenente Luís Carlos, é você mesmo?
- Sim sargento Liminha, sou eu mesmo e continuo vivo como o senhor
me deixou no último encontro.
Elisabete olhava de um lado para o outro tentando entender o que os
dois conversavam. Apesar do olhar atônito, ela parecia feliz ao ver
os olhos do pai brilhando como há muito ela não via.
- Vocês dois querem me dizer o que está acontecendo aqui?
- Você nunca contou a ela sargento?
- Contou o quê papai? O que é que eu não sei?
- Nada demais filha, são histórias de quartel!
- Histórias de quartel coisa nenhuma pai, por favor, eu quero saber.
- São bobagens filha. Sabe como no quartel todo mundo gosta de
aumentar as coisas.
- Luís, eu confiei em você, acho que você me deve isso, por favor me
conte, seja lá o que for. Quanto a você pai, não sei o que preparou
para a gente jantar, mas coloque mais um prato na mesa.
- Ta bem, filha, mas não acredite na metade do que ele te contar.
- Estou esperando Luís.
O velho sargento deixou a sala e foi para a cozinha terminar o
jantar.
Luís começou sua narrativa:
- Bem Bete, posso chamá-la assim?
- Não
Ele corou.
- Meus amigos me chamam de Lisa – ela disse, rindo do embaraço dele.
- Bem Lisa, na verdade eu nem sei porque seu pai nunca contou essa
história para vocês, pois é talvez a história mais bonita que ele
teria para contar.
- Mas do que se trata, fala logo!
- É sobre o acidente de seu pai, não foi só um acidente isolado. Ele
se atirou na frente do jipe.
- Como é que é? – Lisa estava atônita.
- É verdade, ele se atirou na frente do jipe que vinha em velocidade
e meio desgovernado pelo barro da estrada.
- Ele tentou se matar? O que há de bonito nisso?
- Eu estava fazendo os exercícios com minha tropa quando pisei em
falso em um buraco e caí, torcendo o tornozelo. Era um trecho em
curva e só dava para escutar o barulho do jipe se aproximando.
Quando seu pai percebeu o que ia acontecer ele atravessou na frente
do jipe e me puxou, me pondo a salvo num barranco, mas não deu tempo
dele subir, pois o jipe pegou suas pernas e o atirou longe, barranco
abaixo. Foi assim que ele quebrou a perna em dois lugares e teve
outros machucados também. Ele salvou a minha vida.
Lisa estava emocionada, os olhos marejados, e olhou para o lado e
viu seu pai parado na porta que dividia a sala e a cozinha.
Dirigiu-se a ele e o abraçou com muita ternura e carinho.
- Por que pai? Por que nunca contou isso pra gente?
- Não contei, porque antes mesmo de me lembrar de contar, eu ainda
estava no hospital, sua mãe me deu bronca dizendo que aquilo tinha
acontecido comigo porque eu devia estar bêbado. Por isso não contei.
Ela já tinha feito o seu julgamento.
-Ah papai! Como o senhor deve ter sofrido com isso!
- Não, meu sofrimento maior foi ter dado baixa do exército.
- E aposto como nunca mostrou a ela sua medalha também. Por
heroísmo! – e virando-se para Lisa – seu pai deu baixa como herói.
Lisa estava emocionada ao lado do pai e olhando para Luís, murmurava
entre dentes: “obrigada, muito obrigada!”
O Brasil continuava com sua política de neutralidade até que no
final de janeiro de 1942, Vargas finalmente corta relações com os
países do eixo.
Navios brasileiros começam a ser afundados por navios alemães. No
Rio, e nas principais cidades manifestações populares exigiam que o
país unisse suas forças aos exércitos aliados para combater o
fascismo e o nazismo, declarando guerra aos países do eixo. Fato que
só iria acontecer em agosto daquele ano.
Lisa e Luís Carlos passaram a se ver quase todos os dias, quando não
por causa do serviço, ele aparecia nos finais do expediente de Lisa
e iam juntos para casa. Eles estavam se entendendo muito bem e
conversavam muito sobre o trabalho dela na análise das notícias que
chegavam diariamente. Parecia ser iminente que logo o Brasil teria
que entrar na guerra, pois o país já vinha sofrendo pressões dos
Estados Unidos.
Quando a declaração de guerra de fato aconteceu, Lisa ficou
apavorada, pois ela sabia que Luís Carlos teria que ir para o front.
Eles estavam cada vez mais apaixonados e não conseguiam mais ficar
longe um do outro, embora isso acontecesse às vezes por força dos
plantões que Luís tinha que dar no quartel
No mês de setembro, numa noite quente, ao chegar em casa Lisa
deparou com a apartamento às escuras e imaginou que seu pai tivesse
saído, pois nos últimos tempos ele vinha se sentindo muito bem,
desde que a verdade foi contada por Luís, ele voltou a sentir
orgulho de si mesmo. Lisa até sorriu um pouco pensando “velho
danado” mas, ao acender a luz, viu os pés de seu pai próximo ao
banheiro. O pai estava caído e imóvel. Ela chamava, gritava por ele,
mas não obtinha resposta. Abriu a porta do apartamento e gritou por
socorro, mas quase não aparecia ninguém, até que um morador do andar
de cima desceu correndo e constatou que o velho sargento estava
morto. Lisa entrou em pânico, tentando reanimar seu pai, mas o
vizinho tentou acalmá-la dizendo que ele se fora e que não havia
nada que pudessem fazer.
Refeita do pânico ela disse que precisa telefonar e como não possuía
telefone, o vizinho ofereceu-se para ajudá-la. Ela não sabia que
providências tomar e precisava da ajuda de Luís Carlos e tentou
desesperadamente localizá-lo, mas era tudo em vão. Deixou diversos
recados em todas os lugares onde ele poderia estar e, então, ligou
para seu supervisor no trabalho e logo depois ele estava no
apartamento dela. O vizinho chamou a esposa e os dois também faziam
companhia para Lisa. Por volta das nove horas da noite chegou Luís
Carlos que imediatamente começou a tomar todas as providências,
ligando para o Hospital do Exército e também para seus superiores.
No dia seguinte, os jornais noticiavam a morte do heróico sargento
Liminha, por um infarto fulminante do miocárdio. O enterro seria
naquele mesmo dia e o sargento seria sepultado com todas as honras
de herói. E foi no sepultamento que Lisa teve outro susto ao avistar
sua mãe, chorando copiosamente, fato que deixou Lisa irritada, pois
durante anos seu pai vivera só e sofrendo sozinho as dores do
abandono da mulher que ele sempre amara, mas de quem nunca recebera
um carinho sequer.
A mãe de Lisa aproximou-se dela e foi recebida com frieza.
- Eu não sabia que ele era um herói.
- Eu sei, pra você ele era um bêbado e ele só bebia porque você o
julgou antes dele poder contar sobre o acidente.
- Me perdoe filha!
- Você não me fez nada. Não é a mim que tem que pedir perdão. Eu
preciso ir agora, estão me esperando.
E foi assim que Lisa viu sua mãe após dez anos passados.
Luís Carlos acompanhou Lisa até seu apartamento e ela foi preparar
um chá para eles. Ela estava exausta, com olheiras de tanto chorar e
por ter ficado toda a noite em claro. Seu chefe a dispensara do
serviço no dia seguinte, ordenando que ela descansasse bastante. Ela
cumpriu bem as ordens e, ao acordar no dia seguinte, viu Luís Carlos
dormindo no sofá. Ele havia passado a noite lá. Ela sorriu e
beijou-lhe o rosto o que fez com que ele prontamente acordasse.
Os dias que se seguiram foram agitados. A política interna vivia
momentos difíceis e a política externa vinha sofrendo muitas
pressões também, pois era fato conhecido que Vargas tinha simpatia
pela Alemanha, apesar de já haver rompido relações diplomáticas com
os países do eixo.
Lisa e Luís Carlos, cada vez mais apaixonados, encontravam-se sempre
que possível e na virada do ano de 42 para 43 eles passaram a noite
juntos literalmente. Ela preparou um jantar bem especial, um assado,
uma champanha e uma sobremesa deliciosa. Após o jantar Lisa disse
para Luís Carlos:
- Meu querido, se você tiver mesmo que ir para esta guerra estúpida
eu vou esperar por você todos os dias e prometo que quando você
voltar vai encontrar uma mesa como esta, para que tenhamos um jantar
maravilhoso de reencontro. Em seguida, ela o beijou com muita paixão
e esta foi a primeira noite de amor dos dois.
Em 1943 a guerra tomava seus momentos mais cruéis com a participação
dos exércitos aliados em toda a Europa já começando a expulsar os
alemães de alguns territórios ocupados. Mas aqui no Brasil o
confronto maior era interno com muita movimentação de protesto de
estudantes e de políticos querendo a volta do país à democracia.
Nesse período todo Lisa e Luís Carlos viviam uma vida quase que em
comum. Apesar dela não ter-lhe entregado uma cópia da chave, ele
sabia que ela sempre deixava uma cópia em baixo do tapete na porta
de entrada. Ele respeitava a vontade dela e só aparecia quando
convidado por ela.
O tempo ia passando e as notícias de que o Brasil iria participar da
guerra estavam mais fortes a cada dia o que apavorava Lisa. Luís
Carlos era tudo o que ela tinha. Tinham pensado em se casar, mas a
guerra fazia com que esperassem mais.
Os rumores estavam cada vez mais fortes, a pressão popular também.
Lisa recebia diariamente notícias da guerra, li-as, selecionava-as e
depois fazia com que chegassem às mãos de Luís Carlos ou então iam
direto para o Palácio do Catete.
Uma notícia chegada dos Estados Unidos fazia referência a morosidade
que o Brasil vinha dando à Segunda Guerra, talvez pela simpatia que
o presidente tinha pelos nazistas. Isso deixou Lisa preocupada, pois
ela sabia que agora era só uma questão de tempo para o país entrar
na guerra para valer.
Apesar da declaração de guerra em agosto de 1942, somente em maio de
1944 é formada A FEB Força Expedicionária Brasileira. E dois meses
após, desembarcaria seu primeiro contingente na Itália.
Luís Carlos estava nesse primeiro contingente. Antes do embarque
ficaram aquartelados muito tempo realizando os treinamentos
necessários que os preparassem para os dias difíceis que estavam por
vir. Desta forma ele ficou muitos dias sem ver Lisa e somente no dia
do embarque é que puderam se despedir pessoalmente.
Na noite de despedida, Lisa estava chorosa, mas não queria passar
essa impressão para Luís Carlos e, desse modo, quase evitava olhar
para os olhos dele. Estavam sentados no sofá, ela com a cabeça
apoiada nos ombros dele. Os dois praticamente em silêncio.
As horas haviam se passado rapidamente sem que eles conversassem
sobre qualquer assunto. Ela queria apenas a proteção de seus braços
e ele queria tocá-la por inteiro, mais uma vez.
- Lisa, se o mundo acabasse nesse exato momento, com você em meus
braços, eu teria uma morte muito feliz.
- Saiba que eu também, meu amor!
Luís com as pontas de seus dedos levantou o rosto de Lisa, e ao ver
aqueles olhos brilhantes, puxou-a para si e beijou-a docemente,
apertando seu corpo contra o seu, sentindo-a mais sua do que nunca.
Lisa entregou-se de corpo e alma aquele homem que em poucos dias
estaria numa guerra que não era a dele, mas para cumprir com seu
dever de militar.
Luís Carlos beijava-a com ardor agora, e suas mãos percorriam todo o
corpo de Lisa, arrancando suas roupas ao mesmo tempo em que ia
tentando livrar-se de suas próprias roupas. Em poucos instantes,
Lisa estava nua em seus braços, a pele arrepiada pelo desejo e Luís
possuiu aquele corpo maravilhoso de todas as formas imagináveis e
Lisa correspondia a cada carinho, a cada toque, como se fosse a
última vez.
Pouco tempo depois, adormecidos um nos braços do outro, Lisa
acariciava os cabelos de Luís Carlos e chamava-o baixinho. Era hora
de partir.
Era julho de 1944 e a opinião de todos era que a guerra já estava
quase em seu final. Os aliados estavam conseguindo expulsar os
alemães dos países invadidos e, na verdade, nem precisavam da ajuda
do exército brasileiro. A decisão havia sido mais política do que
qualquer outra coisa, mas os dirigentes populistas sempre gostaram
de se exibir. Da mesma forma, na Argentina, Perón declarou guerra à
Alemanha quando esta já estava praticamente derrotada. Mas, ainda
assim, A Europa era um campo de batalha muito feroz. A Alemanha já
estava sendo cercada pelos ingleses, pelos americanos e, também
pelos russos que já haviam iniciado uma contra ofensiva.
Nos campos da Itália, um exército já desmontado resistia mais pela
honra do que pelo ideal e era num desses campos que estava a Força
Expedicionária Brasileira. Parecia estranho brasileiros na Itália
lutando contra alemães;
No início, logo após o embarque, Lisa escrevia quase todos os dias
para Luís Carlos e ele para ela. Mas após o desembarque as cartas
raramente eram entregues devido aos movimentos das tropas. Assim,
Luís Carlos parou de escrever e Lisa continuou escrevendo, mas como
não obtinha respostas foi diminuindo seu ritmo.
Diariamente, no entanto, ela acompanhava as notícias que chegavam do
front e por elas sabia que Luís Carlos estava bem, pois seu nome não
aparecia na lista de baixas. Quando da tomada do Monte Castelo, a
batalha mais sangrenta que a FEB participou Lisa teve a notícia da
vitória das tropas brasileiras, mas também ficou sabendo que o
jovem, agora Primeiro Tenente Luís Carlos, sofrera um ferimento na
perna e que havia sido conduzido para uma base aliada.
Diante do ocorrido, Lisa ficou aliviada, mas cada dia mais
apreensiva, pois não recebia notícias.
Em abril de 1945, Lisa deu à luz a um menino. Na última noite que
tiveram ela engravidara de Luís Carlos e esperava pela volta dele
para registrar o menino, embora ela desejasse que o menino se
chamasse Afonso, como seu pai.
O tempo foi passando e os aliados retomando a Europa. Os alemães já
haviam se rendido e os americanos concentravam todas as sua forças
agora contra o Japão, que também resistia como podia à ofensiva
americana.
Com a rendição do Japão, após as bombas de Hiroshima e Nagasaki, a
guerra chegara ao seu final e Lisa sem notícias de Luís Carlos.
No Brasil havia muita alegria pelo final da guerra, mas a situação
interna estava cada dia pior, com todos os segmentos da sociedade
querendo destituir Vargas do poder, fato que iria acontecer ainda em
1945.
Lisa concentrava-se em seu trabalho, acompanhado diariamente
notícias vindas da guerra na tentativa de descobrir algo sobre Luís
Carlos. Até que um dia uma notícia dizia que o mesmo navio americano
que transportara os soldados brasileiros estaria atracando no porto
do Rio de Janeiro trazendo o mesmo contingente que havia levado para
a Itália.
No dia anunciado como o dia da volta, Lisa dirigiu-se ao porto na
esperança de reencontrar Luís Carlos, mas o táxi em que se
encontrava não conseguia andar, pois milhares de pessoas acorriam ao
porto vindos de todas as direções.
Seria impossível seguir em frente, então ela pediu que o motorista
fizesse meia-volta e a levasse ao local onde ele a apanhara. Logo
depois chegava em casa e correu para preparar o jantar para ela e
para Luís Carlos. Afinal ela tinha certeza de que ele iria para casa
o mais cedo que pudesse.
Pegou o bebê no apartamento do vizinho de cima e foi até a um
açougue quase ao lado do prédio, comprou um bom pedaço de carne,
batatas, verduras frescas e ainda uma garrafa de um bom vinho,
voltando em seguida para o apartamento onde iniciou os preparativos
para o jantar, olhando para o relógio a cada minuto.
- Vai dar tempo, eu sei que vai! – murmurava a cada segundo.
Enquanto a carne assava e o arroz cozinhava, ela correu para o
banheiro e tomou uma ducha rápida, sempre murmurando: “vai dar
tempo, eu sei que vai!”
Saiu do banho, olhou-se por segundos no espelho e ficou admirada,
pois ainda era uma mulher muito bonita. Correu para a cozinha, ainda
enrolada na toalha e o assado já estava quase no ponto e o arroz já
estava pronto. Preparou rapidamente uma salada e foi se arrumar.
Vestiu-se com seu vestido mais bonito, um vestido azul que ela quase
não usara nos últimos tempos, mas que marcava bem seu lindo corpo.
Voltou à sala e começou a preparar a mesa, uma toalha bonita, os
pratos, os talheres, as taças de vinho, o vinho, flores ao centro da
mesa e... “falta alguma coisa” – pensou. “As velas!” Correu para o
armário, pegou os castiçais, teve que limpá-los primeiro para tirar
as marcas de oxidação da prata e colocou as velas. Foi até o quarto
e o bebê dormia a sono solto.
Ela pôs uma música bem suave na vitrola, sentou-se e, de repente deu
um pulo do sofá: “Meu Deus! A sobremesa!” Como havia se esquecido da
sobremesa? Saiu correndo do apartamento, deixou a chave em baixo do
tapete e foi correndo até a Confeitaria Colombo, que por sorte, era
ali perto.
Um homem subia vagarosamente as escadas do prédio de Lisa, degrau
por degrau, apoiando-se em uma bengala. Estava barbado e usava um
uniforme em cujas ombreiras brilhavam as duas estrelas de primeiro
tenente. Abaixou-se com certa dificuldade, tateou a mão sob o tapete
e achou a chave. Colocou-a na fechadura e entrou.
O que viu deixou-o atônito, Lisa esperava alguém, a mesa posta, um
cheiro bom vindo da cozinha, mas a casa parecia vazia. “Talvez
esteja no vizinho” – pensou. Sentou-se no sofá para aguardar sua
chegada quando um choro de criança despertou sua atenção. Dirigiu-se
ao quarto e viu aquele bebê já crescidinho que acabara de acordar e
por isso chorava. Sentiu seus olhos se encherem de lágrimas e
imaginou que talvez tudo aquilo fosse o motivo de não ter mais
recebido cartas de Lisa. Saiu do quarto, apanhou sua mochila no
sofá, olhou em volta para as paredes e saiu do apartamento, deixando
a chave no mesmo lugar onde a pegara, sob o tapete.
Desceu lentamente as escadas do prédio e, chegando à rua, fez sinal
para o primeiro táxi que passou, dizendo ao motorista: “Estação
Rodoviária”.
Assim que o táxi partiu, Lisa virou a esquina da rua onde morava .
Andava apressada, com o coração pulando de ansiedade. Chegando ao
prédio ela murmurava:”Vai dar tempo, eu sei que vai!” Subiu as
escadas e já ofegante, abaixou-se para pegar a chave, ela ainda
estava lá, no mesmo lugar em que ela deixara. Entrou em casa, foi
ver o filho que choramingava, sorriu para ele dizendo:”Hoje você vai
conhecer seu pai, você é muito parecido com ele”.
Pegou o filho no colo, terminou de arrumar a mesa, abriu o vinho,
serviu-se de uma taça, sentou-se no sofá e esperou.
Ivan Jubert Guimarães
Direitos reservados ao autor
|